20 de julho de 2014

O cão


    Precisava ir ao banheiro.
    Bruno caminhava lentamente pelo corredor que saía de seu quarto. Passos lentos e leves para não acordar seus pais. Já era tarde e ele não pretendia ver a fúria nos olhos da mãe.
    Eles lhe perguntariam: “Por que diabos está acordado até agora?!”. A resposta era óbvia: ele estava em seu computador. Os seriados consumiam suas madrugadas de férias. Seu pai já ameaçara confiscar o laptop, caso Bruno fosse pego novamente acordado tarde da noite.
    A bateria do celular já anunciava a proximidade do desligamento. O telefone servia como lanterna para o caminho ao banheiro.
    A escuridão era ameaçadora. Logo à frente, uma escada de madeira. Lisa e longa. Se o aparelho desligasse, ele estaria apenas a mercê da luz prata da lua.
    Era Lua Nova e tudo estava com um aspecto negro mesclado ao prateado em meio às trevas. O casarão antigo gritava dolorido a cada passo vagaroso nos tacos de mogno. A luz fraca do celular refletia no assoalho que recentemente fora encerado pelas mãos da habilidosa empregada.
    Dona Bardô era velha e seca. Trabalhara às três famílias que lá moraram. Dormia num casebre que ficava no jardim de trás do casarão. Limpava todos os dias, mas raramente era vista pelos patrões. Discreta e circunspecta, só falava com os chefes no dia do pagamento. Sempre comentavam do mau hálito da velha com o filho.
    O que chamava a atenção de Bruno era o jeito como ela andava arcada combinado às olheiras, deixando a impressão de um eterno cansaço.
    Ele continuou a andar devagar, sempre pedindo mentalmente que o piso não rangesse tanto. Passou em frente ao quarto dos pais e teve a sensação de não ter ninguém lá. O ar que soprou era solitário e frio. Tinha uma forte convicção de que estava sozinho em casa. Ninguém dormia ali.
    A certeza estranhamente não lhe pareceu loucura. Era um cético. Não acreditava em energias, muito menos em sexto sentido.
    Nada daquilo fazia sentido, finalmente percebeu.
    Sorriu aliviado. Continuou o trajeto ao banheiro. Alívio real sentiria quando chegasse lá.
    O celular gritou num pedido de “carregue-me” assim que chegou a escada. Dezenove degraus em curva que chegavam à sala principal. A bateria não poderia acabar ali, tinha pelo menos que descer os degraus em segurança!
    Quando inconscientemente contou o décimo terceiro degrau descido, ouviu-se o último grito do celular e, em um fraquejo, emitiu o último raio de luz. Escuridão.
    Merda.
    Piscou três vezes os olhos para habituar-se ao escuro. Sua nova fonte de luz era a Lua, que entrava na casa e era refletida pelo piso polido.
    Desceu os últimos seis degraus
     O silêncio, nunca antes escutado naquela sala, impressionou Bruno grandemente. A atmosfera sem som cheirava à esterilidade. Nada com vida poderia viver ali a noite. Algo acelerou sua adrenalina. Seu coração batia forte, podendo senti-lo na garganta.
    Em um flash seus olhos fecharam e ele voltou àquele momento no quarto do vizinho, João. Seu rosto cheio de espinhas e seu dente consumido pelo tártaro eram iluminados por uma lanterna debaixo para cima.
    – Vocês deveriam demitir aquela velha. – Disse lentamente. – Você nunca sentiu o cheiro de bosta da boca dela?! É coisa de feiticeira, é uma praga às bruxas...
    – Cale a boca, João! – Repreendeu Bruno.
    – Você não sabe o que aconteceu para a primeira família partir da sua casa e vendê-la a preço de bananas...?
    João esperava ansiosamente o interesse de Bruno. Não recebendo, continuou a história mesmo assim:
    – A filha mais nova do primeiro patriarca da casa foi assassinada... – Ele sorriu e voltou a falar lentamente. – ...Lá dentro.
    Os olhos de Bruno tremularam procurando um sinal de verdade no rosto de João. A acne do garoto avermelhou-se de prazer quando sentiu o medo demonstrado.
    – Dizem que o cachorro da família comeu a menininha de madrugada. – Ele ria convulsivamente. – E imagina quem era a babá da vítima?! Dona Bardô, a bruxa do casarão.
    – Dessa vez você se superou na criatividade. – Bruno riu e, para seu desgosto, saíra uma risada um tanto insegura.
    – Minha avó se lembra de quando aconteceu... dos comentários. – João falava muito sério. Bruno preferia acreditar que João era um grande mentiroso.
    – Minha avó disse que uma semana depois da família partir, o delegado da cidade encontrou dona Bardô dentro do casarão... Na sala... – Ele deu um sorriso torto, até ele estava possuído pelo medo. – ... Conversando com o espírito da menininha morta.
    Então Bruno abriu os olhos e estava de volta ao pé da escada, na sala principal da casa. Escuridão.
    Aquela lembrança o pegou de surpresa. Quando João contara aquela história, ficara um ou dois dias evitando a sala e, depois, acabou esquecendo.
    Mas agora, seu coração dava murros em sua garganta para pular pela boca. Seu estômago embrulhou-se.
    O silêncio estéril e a escuridão mostravam suas garras.
    “Era apenas uma história! Vá ao banheiro logo e volte para o quarto!”, sussurrou a Voz do Bom Senso determinada. Ele sorriu. Era engraçada a situação ridícula em que estava. Uma história, apenas uma...
    “E se for verdade...?”, gaguejou o Medo. Sua voz era estúpida, mas a frase menor surtiu mais efeito sobre seu corpo, fazendo suas pernas estremecerem.
    O silêncio deu lugar a um pequeno barulho no couro do sofá e depois retornou frígido.
    Bruno olhava para a direção do barulho sem piscar. Gostaria que fosse sua imaginação pregando peças. Quando percebeu que o som não retornaria sorriu e enxugou o suor gelado da testa.
    – Onde estão seus pais, Bruno? – Perguntou algo que sentava-se no sofá de costas para ele.
   

    Bruno sentia a situação sufocá-lo. Não conseguia achar palavras para responder a pergunta de quem quer que seja.
    – Meus pais também dormiam naquele quarto. – A coisa ficou um longo tempo calada. – Mas eles foram embora.
    Sufocava cada vez mais. Bruno colocou as mãos tremulantes no pescoço, tentando desapertá-lo.
    – Quem... Quem é você?
   – Não lembra de mim? – A voz da coisa parecia extremamente ofendida. – Eu ficava atrás de você... Assistindo aos seriados. Pensei que tivesse me notado nas madrugadas em que passamos acordados.
    Bruno deu um berro, caindo no chão.
    – Não faça isso. Vai acordar ela! – Pediu a coisa.
    Quando levantou-se do sofá, Bruno pôde enxergá-la.
    A imagem de uma menininha com os cabelos longos e loiros tremulava, iluminando o ambiente.
    Seu rosto e seu braço direito começaram a modificar. Rapidamente em lugar do nariz e do olho esquerdo formaram cavidades rubras: feridas de mordidas. Longos arranhões de pata passeavam, formando na face da pobrezinha caminhos oblíquos. O lábio superior dava a impressão de ter sido puxado para cima, mostrando todos os dentes sobrepostos na gengiva arroxeada. O braço agora estava pela metade, com um osso exposto numa ferida com a carne quase moída.
    Os olhos de Bruno, diante da visão terrível, arregalaram-se tanto que ameaçavam pular. Ele começou a lembrar de todas as poucas missas que não faltou e começou a rezar sussurrando.
    “Precisa fugir daí!”, a Voz do Bom Senso e o Medo não falaram contrapostas e sim em uníssono.
    Arfando, ele começou a recuar, rastejando, em direção à escada.
   Inspirava e expirava, se afastando da imagem horrível e luminosa. Inspirava e Expirava. Inspirava e expirava o ar estéril e silencioso, enquanto a menininha, parada, chorava.
    Ela passava os dedos tremulantes sobre a ferida do rosto freneticamente. E voltava os dedos em direção aos olhos, com muito sangue. O retorno do ato era as lágrimas que caíam indiscriminadamente do olho bom.
    Agia como se tivesse acabado de descobrir que estava machucada.
    – Me ajude, Bruno... Me ajude!
    Ele ainda se afastava o mais rápido que podia em direção à escada. A perna doía excruciantemente após a queda devida ao susto. Inspirava e expirava.
    Inspirava e... Ele sentiu o cheiro.
    O odor de esgoto a céu aberto. Cheiro de merda. O hálito de dona Bardô. Quando Bruno percebeu do que se tratava, já era tarde. Ele tocava na velha corcunda.
    Num grito, virou-se para trás e viu a velha sorrindo. Ela alternava sua visão entre o garoto no chão e o espírito da menina à frente, no sofá. Ela revelava todos os dentes podres e um fio de saliva espessa caía entre eles.
    – Carne fresca. – Disse lentamente, deliciada.
    – Fuja, Bruno! – Gritou a menina ferida e reluzente. Ela chorava ainda mais, soluçando.
    O garoto, no chão, não conseguia se mover. Ele estava hipnotizado pelos olhos da velha que agora fitava-o. Ela falava palavras estranhas, em uma língua desconhecida e o bafo era torturante. Entre crises de pânico e ânsia, conseguiu finalmente desgrudar-se dos olhos de dona Bardô.
    A velha começou a rosnar baixo e o volume dos sons que fazia com a boca aumentava gradualmente. Os dentes podres começaram a se afiar. Como o fogo lambe o papel com álcool, os pelos foram avançando sobre o corpo da bruxa. O nariz afinou-se, moldando perfeitamente com a boca agora cheia de dentes pontiagudos.
    Um cachorro. Ela estava se transformando em um cão! Era tudo verdade! Era ela o cachorro que matara a menina e não o da família... Era ela! A assassina.
    “Carne fresca”, sussurrou o Medo em sua cabeça, imitando a velha. “Fuja, Bruno!”, agora a voz tornou-se aguda e dócil, imitando o fantasma da garota. “Você é o próximo, Bruno...”, o Medo retornara com sua sonoridade normal, patética. Bruno esperava a Voz do Bom Senso opinar contra, mas o que recebeu foi o silêncio.
    Tudo estava escuro novamente. O fantasma da menina ferida fora embora. Os olhos púrpura do cão eram pequenas fontes luminosas com a fraca iluminação lunar. Ele rosnava forte e Bruno podia sentir o odor pela boca de tão intenso.
    – Por favor, tenha piedade de mim...! – Pediu deitado sobre a madeira.
    As patas enormes do cão maligno estavam sobre ele.

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